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domingo, 28 de dezembro de 2014

Primum non nocere - desafios diários contra a prática do exagero "para o bem"

Estava com amigos em uma festa de aniversário, e como de costume, acabamos entrando no assunto "profissão". Sou médica, gosto muito do que faço e não escondo isso de ninguém. Estávamos falando animadamente quando um dos integrantes da roda acaba por me chamar de canto e pede "minha opinião como médica" com relação a assuntos particulares de saúde. Admito que minha curiosidade é nata e meu interesse pelo outro é assim, espontâneo, e realmente não consigo dizer não quando me pedem uma "consultinha"... Não que de fato eu vá consultar, mas o que me interessa é a preocupação do outro, o que aflige a mente de uma indivíduo a ponto de fazer o mesmo me interpelar?
Sim... Sou muito curiosa.
Em poucos minutos o colega expôs seus anseios e dúvidas e me pus a explicar algumas coisas. Ele queria saber a respeito de check up, avaliação de rotina, e contou que tivera alguns problemas renais e que na sua família havia histórico de diabetes e câncer.
Poxa! Pensa no turbilhão de ideias e hipóteses diagnósticas que passaram pela minha mente! Pera aí, hipóteses diagnósticas do quê? O colega não tinha qualquer queixa, não sentia nada, tinha uma vida normal! Bem. Admito que esse não foi meu primeiro pensamento, pensei em doenças, doenças, doenças... Caro leitor, entendo que penses que talvez não há nada de errado em ter pensado em doenças, afinal de contas, sou médica... Mas não funciona bem assim, ou melhor, não deveria funcionar.

Os exames de rotina deveriam servir como screening de doenças crônico-degenerativas e ou doenças próprias da idade, faixa etária, etnia ou sazonalidade; e deveriam servir para complementar uma avaliação física completa e detalhada acerca da vida desse indivíduo. Os exames servem de controle e acompanhamento, e avaliam risco de desenvolvimento de doenças ou de detecção de fatores de predisposição a condições que possam prejudicar a saúde dos indivíduos. No entanto, o que vemos diariamente, é uma enxurrada de pedidos de exames de todos os tipos, sem qualquer avaliação clínica ou física dos indivíduos, sendo que os exames são solicitados sob a forma de "protocolos" prontos, na maior parte da vezes, iguais para todos os clientes daquele determinado profissional. Quero ainda, deixar bem claro aqui, que nada tenho contra protocolos e sei da validade e importância que têm os mesmos quando aplicados corretamente; refiro-me aqui a "receitas de bolo", solicitações de exames em larga escala, sem a preocupação na adequação dos mesmos às necessidades e singularidades do paciente. Esquece-se o dano que se causa no físico e na psique do paciente ao se solicitar exames desnecessários, que podem trazer resultados alterados, sem que nada signifiquem para a saúde do interessado. Imagina como tu te sentirias com um resultado de uma exame que apresenta alteração em relação aos valores de referência laboratoriais, que vêm digitados logo ao lado do resultado do exame, chamados de "valores normais".

"Primum non nocere" - primeiro não causar dano; o primeiro princípio da medicina, o princípio hipocrático, na minha opinião, mais esquecido de todos os tempos em âmbitos de atenção à saúde dos indivíduos. Expusemos nossos pacientes, cada vez mais, a exames com irradiação, invasivos, com contrastes, biópsias... Enfim, um mundo de substâncias e procedimentos que causam medo, dor, cortes, desconforto. Será que há mesmo tanta necessidade assim de "investigar"... Será que estamos diminuindo os riscos de doenças graves, ou risco de morte, ou expondo à mais riscos e mais lesões potencialmente patogênica? Eu não tenho essa resposta.

Graças a Deus eu pensei nisso no decorrer da longa conversa que tivemos, minha sorte é gostar de ouvir, e nesse tempo, aproveito para pensar - não é à toa que tomos duas orelhas e apenas uma boca. Convidei-o a um consulta de rotina, para que pudesse examiná-lo, conversar ainda melhor e organizar as ideias, já que o silêncio e a confidencialidade do consultório eram mais favoráveis para a formulação do meu raciocínio e para que pudesse explicar a ele os procedimentos que seriam necessário.

Uma simples conversa nos mostra onde anda nossa humanidade, nossa capacidade de se importar com o outro, nosso compromisso com a ética, nosso compromisso com nós mesmos, afinal, o juramento do médico prevê que não causemos dano a ninguém... O excesso pode ser danoso, tudo na vida é questão de balança - equilíbrio. A harmonia almejada não é composta dos mesmos elementos de cada lado da balança. mas sim se elementos que pesem igualmente de cada lado. Cada indivíduo é único, singular, e merece ser ouvido, sentido, tocado; é preciso exercitar a humanidade - o quê de humano que existe em nós, pois, temos o "hábito" de esquecer de sentir.