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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Ninguém é 100% bom

Estava no consultório dia desses e uma senhora, paciente minha há alguns meses, trouxe-me exames e estava sem queixas no momento e por isso sobrou-nos um tempo a mais para conversar durante a consulta. Perguntei como andava a vida, disse-lhe que a achei mais viva, mais animada, e ela respondeu que estava feliz por termos conseguido resolver seu problema de hipertensão e que nunca antes tinha consigo atingir níveis pressóricos tão bons, e isso fazia sentir-se bem, sentia-se mais disposta. Perguntei da família, lembrava que uma das vezes ela trouxera uma neta ate o consultório. Ela disse que a menina estava bem, que ela e o esposo a esperavam lá fora, perguntei sobre os pais da criança e ela disse que o filho era usuário de drogas, que ele e a esposa haviam sido internados várias vezes devido à adicção mas sempre abandonavam os tratamentos e hoje, viviam nas ruas de Curitiba, agora com um "menino" de 1 ano e meio. Eles haviam gasto tudo que podiam para ajudá-los, e agora estavam "lavando as mãos".

Fez-se um silêncio constrangedor, eu fiquei consternada com o relato. Eu perguntei - e a senhora conhece seu neto? Ela disse que sim, pegou o celular e me mostrou uma foto, era mesmo um menininho muito lindo. E por que a senhora não fica com ele? Porque meu marido me mata, imagina! Já cuido de uma menina deles né?!

Eu fiquei triste, fiquei sem ação... Imagina a paciente, era o neto dela! Morando nas ruas, com pais sem perfil para o papel que deveriam exercer...

Abro a porta do consultório ao fim da consulta e a neta da paciente logo vêm à porta, uma linda menina de olhos azulados. Logo atrás o esposo dela, com um braço amputado...

Como ele se sente? Impotente ao ver o filho, criado com tanto amor e carinho escolher um caminho escuso. Quais são as dores desse homem? Seria mesmo errado ele "lavar as mãos"?

Ninguém é 100% ruim.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Sozinho

As histórias relatadas aqui são um misto de realidade e ficção. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, já que os envolvidos nos "causos" estão com a identidade preservada sob sigilo médico.

Estava acontecendo o curso de sensibilização dos médicos de região da grande Florianópolis, em São José. Grande parte da equipe de profissionais de saúde de Biguaçu estava lá, eu também. A palestrante falou uma frase que marcou: A solidão é a doença dos novos tempos!

As pessoas se reservam cada vez mais, em cascas, em invólucros, impenetráveis, sempre tão preocupadas com sua "privacidade", seu mundo de fantasia. Multidões saem às ruas todos os dias, pegam ônibus, táxis, metrôs. Estão indo ao trabalho, para a escola, às faculdades, ou apenas indo para qualquer lugar. Muitas andam, sem destino... Mas, qual o objetivo de tanta pressa?
Não conversam, não se olham, não se tocam.

Dentro do apartamento, vejo ele mexendo no computador, e permaneço sentada, só observando. Ele não havia notado, mas eu o olhava há pelo menos 40 minutos. Depois ele começou a se movimentar de maneira mais ágil, preparando-se para ir pra cama, convidou mas eu estava com dor, já tinha comentando anteriormente mas o comentário "passou batido". Rapidamente já não ouvia mais os ruídos dele se mexendo de um lado pro outro no colchão até se render ao sono profundo.

Sozinha. Eu também me sentia sozinha, mesmo estando tão ciente de como "as coisas funcionam".

Minha mãe me disse um dia, em reposta quando eu reclamava de não ter um namorado - a gente nasce e morre sozinha, a vida basicamente é isso! Pode-se se estar com alguém certo dia, talvez por algum tempo até, mas no fim das contas, é só você e você.

Eu custo a me acostumar com essa realidade tão adversa. Gostaria de acreditar que podemos contar com os que amamos. O mundo é tão egoísta... e eu e sinto tão sozinha contra todo o resto do mundo. Assim parece tão mais difícil, impossível.

-lágrimas-

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

As decepções tardam... mas não falham

Como de praxe, venho eu escrever um pouco sobre a minha rotina, afinal de contas, não seria sensato escrever sobre coisas que não conheço.
Estava numa das unidades de saúde em que trabalho quando vejo o burburinho se formar no hall de entrada, olho pela porta e percebo um de meus pacientes, bastante alterado, erguendo as mãos e esbravejando na frente dos demais. Ele reclamava que continuava doente, que os médicos não resolviam nada, que isso era um absurdo! Frases e mais frases, em geral repetindo o que já tinha dito na primeira, intercalando palavrões diferentes em cada uma. A esposa estava ao seu lado, apoiando com uma cara de desaprovação para a recepcionista da unidade.
Acabando a consulta saio da unidade e vou ver do que se trata tamanha bagunça. Chego perto dele, como de costume e ele baixa a os olhos, como se não esperasse que eu fosse chegar tão perto, e esbraveja algumas palavras sem conexão, mais parecendo um animal acuado. Eu coloco a mão no seu ombro e pergunto porque ele está tão chateado, e ele diz - porque me dói tudo doutora!
Descubro que ele estava com um exame de urina para me mostrar, e recidivara um problema que ele vinha tratando já há algum tempo. Converso com ele, explico o que o exame dizia, mas ele não parecia entender muito sobre o que eu falava, como se desconfiasse que eu estava escondendo algo muito sério dele. Eu falo abertamente sobre o problema dele, e me viro em direção ao consultório para buscar o prontuário quando volto a ouvir sua voz, esbravejando, em frente à "platéia".
Percebo que precisaria tirar ele dali para poder chegar mais fundo na sua atenção; no consultório percebo que a semente da discórdia estava na esposa, uma senhora calada e amarga. Ela me olhou com olhos que me fuzilavam e dentro das suas pupilas eu podia ver o ódio e todo o ressentimento que ela tinha nutrido por mim, em segredo, nos últimos 2 meses. Ao abrir sua boca, podia sentir féu e suas palavras vieram em minha direção como cravos, atravessando toda a ternura que eu tinha por ambos, como se fosse poeira. Nada do meu trabalho, dedicação, empenho, favores, explicações, nada tinha lhe tocado o coração. Ela me odiava...
Depois de receber toda sua fúria e mágoa, extremamente surpresa, fiquei sem ação, sem palavras, como se um mal súbito se acometesse dos meus músculos, e eu não conseguia falar... nada.
Ele percebeu minha frustração, e se levantou, o mesmo gesto que tive minutos antes, ele colocou a mão em meu ombro e disse, a senhora pode me explicar, porque eu vou ouvir. Mas eu não conseguia, com os olhos cheios de lágrimas baixei a cabeça e deixei as lágrimas caírem sobre a folha do prontuário.
Ele pensou em sair porta afora atrás da esposa, mas exitou, se virou e falou de novo, eu vou tomar o comprimido comprimidinho então, 2 vezes ao dia. Eu acenei com a cabeça.

Estava acabado.

Eu me sentia humilhada, culpada, inútil. Ele também sabia que os limites ali tinham sido excedidos. Ela caminhava firme corredor afora, satisfeita e cheia de si.

Fiquei por uns 10 minutos apenas chorando, um choro doído e surdo, que apertava a garganta, como se alguém estivesse tentando me sufocar. Depois a próxima paciente veio a porta, estranhando que eu não havia chamado mais ninguém, quando abriu ajoelhou do lado da cadeira e me abraçou dizendo: Meu Deus, tens a idade da minha filha... Eu não podia ouvir muito, nem falar, tinha um nó na garganta e um corte, fundo, na alma.

Fiquei pensando que se talvez eu fosse mais séria, fria, imparcial, altiva atrás da minha mesa, retesa, segura como uma pedra mármore, indiferente e fria aos problemas deles, talvez se eu usasse terno e sapatos, ou se eu fosse superficial e enigmática, como todos os demais costumam ser, como os velhos especialistas são, talvez assim eles dessem "valor" ao que eu faço por eles.

Depois refletindo, cheguei a conclusão que talvez, não.

Naquele dia eu fui embora mais cedo.